Bitter em cena: por onde andam as tradicionais cervejas inglesas?
- Priscilla Colares
- 9 de abr.
- 7 min de leitura
Atualizado: 9 de abr.
Qual foi a última vez que você tomou uma Pale Ale... inglesa?
Ahhh, as cervejas inglesas… Se você não começou a provar cervejas “diferentes” por uma tradicional de trigo alemã, é bem capaz que tenha começado por uma Pale Ale — mais conhecida como Bitter na Inglaterra.
Outrora comuns nos portfólios e bares nacionais, os estilos tipicamente ingleses foram perdendo espaço para releituras americanas, que roubaram a cena com perfis de lupulagem mais exuberante e potente. Com tanta intensidade nos copos, é natural que o mercado — e o público — tenha migrado pro amargor mais direto, mais frutado, mais barulhento. E não sei você, mas depois de dar a volta completa no sol dos estilos possíveis de cerveja, a vontade de beber algo mais simples — e bem feito — parece inevitável. É como voltar pra casa. É esse misto de desejo e nostalgia que me dá vontade de trazer as bitters de volta aos holofotes. Ou Pale Ales, se você preferir.
De onde vem esse amargor?
Quando falamos de estilos de cerveja, estamos falando de uma “invenção” moderna — coisa do século 20 — que ajuda a navegar por essa imensidão de tipos cervejeiros ao redor do mundo. E no caso da Pale Ale, dá até pra dividir a história da cerveja em “antes” e “depois” dela. Quer ver? Senta que lá vem história! Porque se você curte amargor e cerveja inglesa, história é o que não falta. Então me deixa divagar um pouco pra te contar como surgiram, onde andam e o que aconteceu com as antecessoras das IPAs.
Comecemos pelo lúpulo — afinal, o assunto aqui é bitter! Essa plantinha verde e aromática, hoje essencial à cerveja moderna, nem sempre foi bem-vinda pelos ingleses. No livro Beer in the Middle Ages and the Renaissance, Richard Unger nos conta que cervejas lupuladas começaram a chegar na Inglaterra via Holanda, por volta do fim do século 13. Até então, a cerveja da época”era chamada de ale, feita com um mix de ervas chamado gruit. Já a tal da beer — e era feita só com lúpulo — causava estranhamento. Mesmo com as cervejas lupuladas (ou beers) começando a cair no gosto da galera inglesa, ainda rolava uma certa antipatia em relação ao uso do lúpulo. Sério! Dá uma olhada nessa pérola do livro Um Compêndio sobre Dieta e Saúde, publicado lá em 1549:

Vou traduzir livremente no estilo “fofoca da taverna”: o autor dizia que a ale era a bebida natural dos ingleses — já a beer, feita com água, malte e lúpulo, era coisa de holandês. E mais: ele afirmava que cerveja com lúpulo fazia mal pros ingleses, porque engordava, inchava o estômago e deixava a galera parecendo… holandesa! Pra piorar, ainda dizia que podia matar com cólica. É mole? Claro que essas alegações têm toda a cara de picuinha com produto estrangeiro, né? Um belo exemplo de resistência à novidade e apego ao jeitinho tradicional da velha ale inglesa.
Apesar da má fama e de algumas tentativas de banimento (como o caso da cidade de Shrewsbury, em 1519, que chamou o lúpulo de “erva daninha perniciosa e maligna”), o tempo tratou de mostrar as vantagens da sua utilização na cerveja. Aos poucos, a distinção entre ale e beer foi sumindo. No século XVIII, os textos já misturavam os termos sem muita cerimônia.
O nascimento da Pale Ale
Mas antes de saltar pro século XIX e entender como surgiram as Pale Ales como as conhecemos, preciso te contar sobre um divisor de águas: o malte.
Você já deve ter ouvido que toda cerveja antigamente era escura. Não é bem assim. Secava-se o malte ao sol, o que dava tons mais claros — prática milenar, inclusive entre os sumérios lá em 1800 a.C. Mas na Inglaterra da Idade Média, sim, a cerveja era escura, puxando pro marrom. Isso só vai começar a mudar no fim do século XIV com a invenção do coque — um combustível derivado do carvão mineral. Diferente da madeira, ele permitia secar o malte sem defumar o grão, resultando em cervejas livres de notas defumadas e mais claras, que pareciam pálidas perto das porters da época. Nascia a pale ale.
Então sim, pale ales são mais antigas do que imaginamos, mas o borogodó inglês só começa mesmo com a chegada do coque. A primeira menção ao termo “pale ale” na Inglaterra vem só em 1715, como aponta o muso da história cervejeira inglesa, Martyn Cornell, no blog Zythophile.
Com a ajuda de tecnologias que surgiram na mesma época como o sacarímetro, descobriu-se que o malte pale era mais eficiente — rendia mais açúcares fermentáveis e era mais fácil de padronizar. A mudança foi lenta (sem WhatsApp na época), mas revolucionária. Todas as cervejas claras que conhecemos hoje vieram dessa virada. Em 1842, por exemplo, essa tecnologia chegou a Plzeň, na atual República Tcheca (alô, Pilsner Urquell!), e daí pra frente foi só pra traz o volume de produção de cervejas mais escuras.
Essas novas pale ales, mais claras e agora também lupuladas, acabaram sendo descritas de forma bem direta: bitter. Martyn Cornell lembra que bitter e pale ale sempre foram sinônimos, e os termos usados de forma intercambiável, embora o primeiro registro que se tem conhecimento do termo “bitter” só tenha surgido em 1842 — depois de “pale ale”.
Bitter para todos os públicos
Esse tipo de cerveja só foi realmente ganhar espaço no mercado inglês no século 20. No século 19, sua produção ainda era modesta, especialmente comparada ao domínio das Porters. As Pale Ales, apesar de já existirem, eram bebidas mais caras — o próprio coque usado pra torrar o malte claro custava mais do que o carvão comum, o que naturalmente fazia com que fossem consumidas por classes sociais mais abastadas.
Foi só depois das duas Guerras Mundiais que as bitters passaram a ser consumidas de forma mais ampla pela população britânica. E como tudo evolui, também passou a haver uma distinção mais clara entre bitters e pale ales: as bitters ficaram com um perfil mais leve e cotidiano, enquanto as pale ales mantiveram um caráter mais alcoólico.
Como é uma Bitter?
Hoje, pedir uma bitter é pedir uma cerveja leve (3.5% a 4% de álcool), com sabor de malte que remete a pão recém saído do forno, biscoito e um toque suave de caramelo — tudo isso com um amargor que varia de médio a médio-alto, mas sempre equilibrado.
O BJCP divide em três categorias: Ordinary, Best e Strong Bitter, com teor alcoólico variando de 3.2% a 6.2%. É como uma escadinha: quanto mais alto o degrau, mais intensidade sensorial.
Os insumos ingleses
De todos os elementos que compõem uma bitter, o primeiro que me vem à cabeça é o malte. Minha expectativa é sempre encontrar camadas de sabor que vão do pão ao biscoito e um caramelo mais suave.
O lúpulo também tem pedigree. Os ingleses cultivam variedades locais há séculos, como o East Kent Goldings, Fuggles e companhia. São lúpulos que não gritam, mas conversam. Têm aromas herbais, terrosos, com notas de chá preto e casca de laranja. Um charme discreto — diferente dos americanos que pulam do copo.
E claro, não dá pra esquecer da protagonista invisível: a levedura. Porque Homo sapiens faz mosto, mas quem faz cerveja mesmo é a Saccharomyces cerevisiae. As cepas inglesas entregam ésteres frutados moderados, sem notas de especiarias.
E pra fechar o quarteto mágico: a água. Pode parecer coadjuvante, mas no caso das bitters, ela tem papel de protagonista silenciosa. A água de Burton-on-Trent, rica em sulfato de cálcio, ajuda a realçar o amargor do lúpulo e a dar aquele acabamento seco e elegante. É tipo o tempero certo que faz tudo brilhar sem aparecer demais. Sem esse perfil mineral, talvez as pale ales inglesas não tivessem ganhado tanta personalidade.
Bitter na prática: bora provar?
No dia 6 de maio, rola a oitava edição do Encontro Sensorial, um evento online pra você praticar a famosa “hora copo” — ou seja, degustar com atenção. Vamos tomar a Jack Burton, uma Extra Special Bitter da Juan Caloto e fazer atividades práticas de avaliação sensorial. É uma oportunidade incrível pra comparar suas impressões, treinar o paladar e lapidar suas habilidades pra identificar aromas e sabores. Te prometo que é das nerdices mais gostosas de se fazer.
Antes de encerrar, quero te dar mais uma dica de Pale Ale aqui das terras mineiras: a King’s Cross, da Verace. Meu último encontro com ela foi da melhor forma possível: direto do tanque da cervejaria. Se tem experiência mais divertida pra fazer numa cervejaria do que tomar do tanque, eu desconheço. Neste dia, não só eu, mas também alguns dos meus assinantes fomos visitar a Verace e tomar uma com o mestre cervejeiro Túlio. Se você ainda não provou nenhuma das duas, fica a dica de entrar pra comunidade de assinantes e garantir 15% de desconto em ambas até o dia do encontro sensorial.
E pra fechar…
Volto em breve com um texto não só pra te ajudar a harmonizar Pale Ales, mas também pra te incentivar a criar suas próprias harmonizações. Vai rolar um segundo desafio de harmonização com prêmios legais pra você encarar essa chatíssima tarefa de testar cervejas com pratos e elevar sua experiência para algo ainda mais divertido.
Se encontrar mais cervejas inglesas incríveis por aí, me avisa?
Abraços,
🍻
P.S.: Se você curte mergulhar mais fundo, boa parte do que contei aqui tem base em estudos e livros como Amber, Gold & Black do Martyn Cornell (também artigos do blog que é fantástico), Beer in the Middle Ages and the Renaissance, do Richard Unger, vozes da minha cabeça que vem de outras literaturas que já nao me recordo mais e, claro, muita taça na mão.
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